Batatas que levam às estrelas
CUIDADO - SPOILERS SOBRE O FILME “PERDIDO EM MARTE”, SE VOCÊ NÃO ASSISTIU E NÃO GOSTA DE SABER DETALHES DA TRAMA OU SEU DESFECHO, NÃO CONTINUE LENDO.
Eu era criança quando me encontrei em uma das várias cozinhas que minha mãe trabalhava. Dessa vez, por alguma razão, minha mãe teve que se ausentar e me deixou ali, por alguns minutos provavelmente, nenhum perigo. Até que a “dona DA CASA”, com quem eu devia falar bem baixinho e concordar com o que pedia, se espantou ao me ver. Havia uma pilha de batatas à mesa onde eu sentava e ela logo perguntou, como um chefe cobra seu funcionário relapso: não está cortando as batatas? A criança que eu era, uns 5 ou 6 anos, mais espantosamente ainda, especialmente para alguém que não concebia uma criança gerada por um empregado não ser desde o berço treinada para os serviços domésticos - e de forma alguma existe demérito nisso -, nunca havia cortado nem mesmo uma maçã para comer. E lá estava eu, prontamente pegando uma faca significativamente afiada e com medo de fazer qualquer coisa que fosse, e sob a supervisão da “dona”, que supôs ser eu uma ajudante talvez, comecei a cortá-las. Nada demais. Podemos cortar batatas, mesmo que não seja essa nossa função, nem tenhamos talento pra isso.
Quando assisto ao filme “Perdido em Marte”, e isso é relativamente frequente, eu sempre lembro desse momento e de como a “dona” dizia: desse jeito você vai destruir o nosso jantar, a batata está indo toda na casca pro lixo. Aposto que alguém abandonado/ perdido em um outro planeta e tendo basicamente um número reduzido de batatas que ele mesmo pode plantar e colher para comer, não desperdiçaria como eu, mas até hoje, seja por trauma, seja por uma revolta infantil congelada no tempo que não tem qualquer utilidade, não consigo cortar batatas direito. E esse tubérculo é tão importante, diz tanto sobre a nossa espécie e progressos civilizatórios, assim como foi o elemento mediador da sobrevivência de uma pessoa em outro mundo, que usou a ciência e sua mente, recorrendo à métodos e técnicas um tanto antiquados, que exigem o nosso estudo e preservação da história, para aguardar a ajuda.
Às vezes ninguém vai te ajudar.
Na verdade, na maior parte das vezes.
No caso da obra cinematográfica, baseada em um livro de um engenheiro da NASA e que empresta um pouco de realismo ao fantástico universo imaginário do início da colonização marciana - que será em breve -, todos se unem para salvá-lo.
Um único cara mobiliza literalmente todas as nações para salvá-lo.
Chegar a outros planetas não é algo inconcebível, já até fizemos isso, embora só o resultado do nosso intelecto na forma de sondas e robôs. Planos concretos estão em execução agora mesmo nessa direção. É real. Porém, imaginar que nações, até mesmo inimigas, colaborando por entenderem que uma única pessoa é merecedora de todos os esforços possíveis para retornar em segurança a seu pálido ponto azul… Mera ficção! Talvez fantasia. Das mais mirabolantes. Difícil de acreditar em tal utopia. E empolgante!
Movida a batatas!
Sustentada por batatas!
Assim eu me senti e assim eu fui, por boa parte da minha vida, quando ter batatas para comer era sim um luxo, especialmente as feitas pela minha mãe, que sabia como ninguém colocar o tempero especial em tudo. E foi ela também quem me ajudou. Quem me salvou. Exagero?
Indignada ao enxergar a “dona” explorando uma criança com a naturalidade de muitos que estão num patamar tão alto que não vêem sequer seres humanos à sua frente, somente trabalhadores braçais em desenvolvimento, sem qualquer outra alternativa ou escolha na vida, ela fez o que julgou correto, atendendo a seus anseios de garantir a janta e, quem sabe, generosamente, ensinar aquela menina a cortar batatas.
E que sorte eu tive por ter essa origem e criação. Por ouvir da minha mãe “pare de cortar as batatas agora mesmo” - não que eu não pudesse aprender como deixar as cascas mais finas eventualmente - pois eu não estava ali para servir “donas” que sequer me pagariam pelo tal esforço. E temos, desde cedo, que entender que todo investimento, de tempo, de intelecto para produzir qualquer produto ou processo precisa sim ser remunerado, merece uma recompensa, seja num acordo verbal ou assinado por todas as partes. Tem valor.
Que maravilha seria se todos esses acordos fossem cumpridos, assim como foi maravilhoso ver as ideias incríveis para que um homem, representando a humanidade, não sucumbisse no deserto marciano.
A “moral” da história é que cortar batatas não é tão difícil assim, às vezes indispensável para que possamos chegar a algum lugar, outras vezes é exatamente onde queremos estar, ou apenas necessário um dia ou outro, jamais uma tarefa menos importante ou que rebaixe alguém, pelo contrário, dignifica. E foram as lições das “cozinhas da vida” que me deram um norte na minha primeira simulação espacial (espero que primeira de muitas), quando os momentos ao redor de uma mesa para refeições tinham um significado ainda maior ao experimentarmos comidas deliciosas - ou tentativas verdadeiras de fazê-las. Pois os que não nasceram “donas” ou “donos” - não de pessoas, que fique claro, embora algumas e alguns pensem isso - talvez precisem de mais paciência, de mais tempo, de mais choro, de mais pilhas de batatas e de fracassos e de quase desistências, mas ousem sonhar.
Sonhem até mesmo enquanto estiverem cortando batatas e essa não for sua vocação, sem muitas perspectivas concretas para vislumbrar um futuro distinto da tarefa que não aproveita todo seu potencial.
No filme, eram as batatas as verdadeiras salvadoras do astronauta. Sem elas, mesmo toda a inteligência e perspicácia do cara, ou a ajuda fantasiosa de um planeta inteirinho, não teriam sentido.
Não há nada de errado em cortar batatas, desde que você tenha idade adequada para o ofício e não se coloque em riscos. ;) Mas se um dia alguém, que asquerosamente sugerir para outros ignorar as tentativas de te tirar da lama/ de um astro vizinho hostil, afinal, você já chegou até “longe demais”, considerando de onde veio, na opinião limitada de gente ordinária (isso não é uma ofensa, é uma constatação de quem não é nada além de comum, não importa o quanto brade ter superdotação - como fazem muitos “donos” e “donas” que acham que podem tudo, até mesmo te transformar num “escravo análogo” como se fosse a única forma de quitar suas dívidas, tornando-se seus donos), lembre-se de cumprir com sua palavra a qualquer custo e buscar realizar suas promessas. Como fazer um rover funcionar e se comunicar com as pessoas para mandar todos se F%derem. Esse ordinário pode tentar até esconder que você existe e seus feitos incríveis para sobreviver, simplesmente por não enxergar vantagem em anunciar o fato - no fim é o ordinário o esquecido.
Cortar batatas pode ser a solução que você precisava para chegar às estrelas (e voltar de lá)! Provavelmente o mundo inteiro não vai se unir para te salvar, mas você não precisa do mundo todo, só precisa daqueles amigos, poucos ou muitos, daqueles que confiam e acreditam nas suas ideias e propostas e que estão do seu lado e topam qualquer insanidade com um pezinho noutros mundos - mesmo que seja só para plantar e cortar batatas lá!